domingo, 20 de fevereiro de 2022

Adaptação e Justiça Climática

A Adaptação ao Aquecimento Global abrange muitos variados aspectos. Em grande parte deles são necessários grandes investimentos. São necessários para manter a capacidade produtiva, não tipicamente para aumentá-la. São destinados a confrontar e contornar os malefícios trazidos pelos efeitos negativos do Aquecimento Global. Os países menos desenvolvidos que a média mundial geralmente não têm contribuição per capita relevante para o Aqauecimento Global. Mas sofrem fortemente seus resultados negativos. Repousam maior parte do que a média mundial da renda per capita nos frutos da terra, onde se abatem os efeitos dos eventos extremos, das secas insidiosas, das mudanças que afetam a produtividade de suas agriculturas.

A Adaptação, para manter a renda per capita do setor agrícola pode exigir recursos muito acima dos disponíveis nestas sociedades. Surgem idéias de financiamentos. Que bom negócio. Uns, em seus processos de desenvolvimento causam perdas a outros. Depois vislumbram mais um bom negócio. Financiar a Adaptação necessária para contrabalançar o mal que causaram.

Tratando de analisar a questão de uma forma justa vem exposto, o publicado na Revista Será?, 


Olvidada justiça climática

 Adriano Batista Dias e Tarcisio Patricio de Araujo | jan 14, 2022
 

 
A leitura que se faz do passado e do presente pode variar conforme o
que está em jogo para os interesses dos agentes envolvidos. Em muitas situações, marcas do passado têm maior importância do que
elementos do presente. Conveniências de uns podem dar vezo a se
subestimarem marcas do passado, e até fazê-las sumir de processos
decisórios.


Imagine-se uma barcaça fazendo transporte misto, carga e
passageiros, em grande lago africano. Em pleno curso, carga no limite
calculado, e firmado como tal por autoridades que controlam o uso
das águas. Já leva o máximo de trinta toneladas de carga, no porão, e
vinte e cinco passageiros, com bagagens de até 30 quilos. Trabalha-se
com 100 quilos por passageiro (respectiva bagagem incluída), em
média. Ocorre que, no próximo porto do percurso, uma festa estava
para ser encerrada – quando a barcaça lá aportou. Saíram 150 kg de
carga, entraram outros 150. Aguardavam ansiosos 155 passageiros.Prefeririam perder o restinho da festa do que esperar horas e horas a
fio pela próxima barcaça. Entrada um tanto forçada. As autoridades
encarregadas do controle náutico na região ainda estavam na festa.
Ninguém mais a quem recorrer. O comandante foi persuadido a seguir.
O anterior assim procedia e tudo dava certo, foi-lhe afirmado, com a
força de um juramento coletivo. Todo ano é a mesma coisa. Novidade,
só para o novo comandante. Capitulou.


Sai a barcaça e a princípio tudo bem. Mas, embora a época do ano
fosse de tempo com ventos leves – nunca passava disso –, o céu
cobriu-se de nuvens de tempestade. E chegaram ventos nada leves. E
lá veio a marola, logo depois ondas nada suaves. Diante de tal
surpresa, não haveria como evitar a embarcação fazer água. Nem
evitar que a situação rapidamente saísse do controle. Enfim, dá-se o
soçobrar. Excesso e inadequada distribuição do peso, com o convés
apinhado.


Vamos aos culpados. Os 180 passageiros? Outras barcaças, de igual
modelo, haviam tido melhor sorte diante de algum excesso de lotação.
A que soçobrou já havia suportado bem outros temporais, quando
satisfazia os limites de carga e passageiros. Teriam sido os 180
passageiros e mais as trinta toneladas de carga a causar o excesso de
peso? Mas, igualmente culpados? Ou teria sido o último passageiro a
entrar? Ou os dez últimos? A razão parece estar com quem põe a
culpa nos 155 passageiros excedentes.
Aí um pré-texto – estória inventada, mas poderia ser real – para o
tema central que passa agora a ser diretamente abordado.


Desde 1856, quando Eunice Foote provou que moléculas de CO2
produziam efeito estufa,
se sabe que é o número delas na atmosfera
que contribui para o Aquecimento Global, não o número das jogadas
na atmosfera no último ano. O principal agente antropogênico é o
dióxido de carbono, isoladamente contribuindo, atualmente, com 53%
do total do efeito estufa
. Sua concentração na atmosfera, até a
Segunda Revolução Industrial, era de 280 partes por milhão. Em 2021,
já se contam 419 partes por milhão, a maior concentração, na Terra,
em 23 milhões de anos. Todas as moléculas de agentes causadores de
efeito estufa deixam de sê-lo dentro de algum prazo. Por serem
absorvidos em processos químicos ou por decaírem para moléculas de
menos de três átomos.


O metano tem, na atmosfera, vinte anos de vida média; quanto ao
dióxido de carbono, ainda não se sabe exatamente. Mas sabe-se ser
de duração de ordem de grandeza superior à da vida humana, acimade três centenas de anos. Enfim, os cientistas da área de química,
juntamente com os climatologistas, podem estimar – com base na
emissão de gases de efeito estufa de cada nação, em cada ano
passado – quanto do estoque de gases de efeito estufa é de
responsabilidade de cada nação. Há um limite que pode ser tolerado
sem causar aquecimento. Acima desse limite, efeitos retro-
alimentadores podem gerar um sistemático Aquecimento Global – e
um nebuloso futuro.


O que excede a tal limite, por conta de cada nação, mede a
responsabilidade de cada uma no efeito antrópico de aquecimento e
decorrências.


O estoque efetivo de agentes de efeito estufa nunca é mencionado
nos tratos para resolver o problema de reduzir a chance de desastres
climáticos maiores. Na COP26 não foi diferente. As nações são
pressionadas a contribuir com esforços de mitigação (redução da
emissão de gases de efeito estufa), que têm custos econômicos (em
geral alto custo econômico, social e político), além dos custos de
adaptação em que devem incorrer. Isso tem lugar sem que
consideração haja à contribuição que cada uma dá ao desastre que é
o Aquecimento Global.


Os esforços de Mitigação são sempre inferiores aos prometidos por
causa da natureza dos benefícios e dos custos da Mitigação. As ações
de Mitigação são bens públicos. Cada tonelada de CO2e que é evitada
de ser adicionada à atmosfera – ou dela é retirada – beneficia todos os
humanos no presente e no futuro. Como todo bem público, que
beneficia a todos e tem os custos recaindo sobre um determinado
agente, termina por encontrar resistência deste agente a arcar com
tais custos. Todos querem que os outros mitiguem ao máximo que
puderem, mas cada um quer minimizar sua mitigação. Justiça
Climática pressupõe que os custos de mitigação sejam proporcionais à
contribuição que cada agente dá ao Aquecimento Global.


Adaptação a Mudanças Climáticas é obrigatório para a sobrevivência
das nações. Mas pouco se fala disso, em contraste com estridente
ênfase dada à Mitigação. Há dois fortes motivos para tal silêncio. E
ouvidos surdos para com quem clama por Adaptação com Justiça
Climática. O primeiro é a existência de recursos para tal, nos países
desenvolvidos. O segundo, porque há responsabilidade de se subsidiar
a Adaptação, com recursos e conhecimento, tal mister devendo ser
atribuído aos que causaram o problema-pesadelo, justamente os
desenvolvidos. E quando há responsabilidades sobre algo tãodramático, é de interesse dos responsáveis que não se fale sobre
responsabilidade. E lá vem a ideia de se financiar a Adaptação. Ora,
uns usaram bens naturais pertencentes a todos os humanos – no
presente e no futuro. Tiveram benefícios, enriqueceram, se
capitalizaram, e causaram o problema. E os que sofrem as
consequências sem as terem causado são instados a lutar por
empréstimos para se Adaptar e para ajudar na Mitigação. Têm seus
compromissos contrariados por mais efeitos maléficos das Mudanças
Climáticas, podendo se tornar reféns de atraso no pagamento dos
empréstimos. Não seria o caso de, sob ótica de justiça, receberem
compensações ao invés de empréstimos?


Antes de se procurar olhar para os dados estatísticos, devem ser
levadas em conta duas alternativas. Tratar as informações em termos
totais por nação ou em termos per capita, por nação. Isso vai sofrer
influência do objetivo que se deseje alcançar. Se o objetivo for
enfraquecer os países de porte continental que não pertencem à área
do Atlântico Norte – Brasil, China, India e Rússia–, o tratamento é pelo
total de cada nação. Que total, o acumulado? Não; este está vinculado
à responsabilidade pelo Aquecimento. É claro que para deixar estes
países na defensiva, o recomendado é o total de adições anuais
recentes. Estes dados estão vinculados ao processo atual de
desenvolvimento. Nada melhor para criar obstáculos a este processo
como encarecê-lo, como dificultá-lo. É o que se faz ao torná-las
vítimas de seus tamanhos, colocá-las na posição defensiva, criando
oportunidades de gerar dissensões internas – parte da população se
sentindo culpada pelo peso com que a nação é vista tendo quando
contra ela se joga informação sobre as emissões do ano anterior. O
adequado é se considerar o fato de que as pessoas têm iguais direitos
sobre os bens naturais, devendo-se levar em conta os valores per
capita das emissões nacionais – sejam acumuladas, sejam adicionais
de um ano.


O leitor pode descobrir quais países sofrem sem ter causado os efeitos
maléficos do Aquecimento Global. São países com baixa taxa de
emissão per capita de gases causadores de efeito estufa, tratados
como dióxido de carbono equivalente. Para tal precisamos dos dados:
quando foi detectado o Aquecimento Global? Pode-se considerar como
tal a data do primeiro relatório do IPCC, 1990. E as contribuições
anuais de cada país em termos per capita podem também ser
consultadas. A contribuição per capita mundial deste ano constitui
uma fração que não teria causado o Aquecimento Global no nível queconhecemos. Alguém pode alegar, com total procedência, que esta
contribuição per capita mundial terminaria por tornar inadequado o
componente andrógeno do Aquecimento Global, dado o crescimento
populacional. Mas é fácil corrigir, abatendo do nível de contribuição
per capita do ano de criação do IPCC um componente de correção da
contribuição per capita mundial, de forma que mantenha constante a
contribuição total mundial anual. Em 1990, enquanto a população
global era 5,28 bilhões, a emissão global de CO2e (dióxido de carbono
equivalente em termos de contribuição ao Aquecimento Global) foi
29,8 bilhões de toneladas. Para manter a mesma contribuição mundial
em 2018, levando-se em conta o crescimento populacional mundial de
44%, o quantitativo da emissão per capita global que mantém a
emissão global igual à de 1990 vem a ser 3,92 t de CO2e. Nações com
contribuição per capita inferior a esta última não concorrem para o
Aquecimento Global com a intensidade que conhecemos. Em geral,
são economias agrícolas e sofrem brutalmente as consequências.


Com a continuação da emissão de CO2, mesmo permanecendo ao
nível mundial total de 1990, o acúmulo deste gás na atmosfera iria
trazer, anos adiante, o Aquecimento Global que já hoje conhecemos.
Efeitos, em termos de eventos climáticos extremos (secas, incêndios,
enchentes) que já estamos vivenciando com o acréscimo atual de 1,2
grau centígrado sobre a temperatura pré-revolução industrial. Todavia,
teríamos muito mais tempo para cuidar e, com certa probabilidade,
não chegaríamos às perspectivas atuais de ultrapassar um acréscimo
de 1,5 grau centígrado. O fundamental é entender que abundam
países na África, América Latina e Ásia, que não contribuem para a
perigosa situação que levou à COP26 a vir a ser ocasião de se
pretender a salvação da vida humana na Terra. É facilmente
entendível o absurdo de se pretender forçar o Vietnã, um dos mais
pobres países do mundo, a investir recursos para mudar seu milenar
modo de cultivo de arroz, que nunca causou Aquecimento Global,
apesar da emissão de metano. Da mesma forma, é interessante
observar como países que continuam a emitir gases de efeito estufa –
sem diminuir tal emissão em ritmo satisfatório – assumem ter o direito
a pressionar a Índia a reformar o milenar processo de convivência com
suas sagradas vacas, de forma a fazê-las parar de emitir metano. E se
trata de dose de metano que nunca produziu efeito estufa fora dos
termos adequados a saudável temperatura atmosférica, favorável ao
bem-estar humano…

Urge que se esclareçam os objetivos políticos da opção pelo trato dos
dados, quando tomados pelos totais por nação ao invés de em termos
per capita por nação. Que sejam estimados e publicados, em termos
per capita, os montantes acumulados de CO2e na atmosfera,
atribuíveis a cada nação, de modo a que se explicitem as respectivas
responsabilidades pelo desastre em construção. Assim, se evitaria o
conveniente amaciamento dos dados – no que respeita a identificação
dos causadores de desmandos climáticos. A responsabilidade pelo
desastre não é da emissão do ano passado. É dos que, arriscando no
desconhecido, construíram o montante de gases estufa, na atmosfera,
que excede o tolerável. Pode-se considerar que não seja crime doloso.
Mas, não seria culposo? Como o do comandante da barcaça
soçobrada, que agiu como se houvesse garantia de o tempo respeitar
o padrão esperado, sem margem para surpresas da natureza.