A uma primeira vista pode parecer que os automóveis estão vinculados apenas a questões de mitigação. Quanto mais eficientes os seus motores, menor a emissão de dióxido de carbono, e menor, portanto, para cada dada viagem, a contribuição ao Aquecimento Global (entendido que esteja considerado um combustível de origem fóssil; o uso do álcool, de origem agrícola, permite tomar como praticamente nula a emissão, dada que será absorvida no crescimento da cana de açucar para a produção de igual quantidade do combustível usado). Mas seja o motor mais eficiente ou menos eficiente, cada viagem de carro que possa ser alternativamente feita a pé ou de bicicleta, estará, pelo sedentarismo a que contribui, pesando contra a saúde do usuário. Este é um ponto relacionado à Adaptação ao Aquecimento Global. Enquanto o Aquecimento traz condições mais contrárias à saúde humana, uma ação que contribua a tornar o ser humano mais saudável representa uma ação cujo efeito se contrapõe ao do Aquecimento Global. Representa, portanto, uma ação de Adaptação. Por isto cabe analisar a questão do automóvel em nossa sociedade sob a ótica da Adaptação às Mudanças Climáticas.
O emprego do automóvel tem custos e vantagens que podem ser destacadas:
- vantagens individuais: maior velocidade nos deslocamentos, flexibilidade de horários e, muito relevante, mas muito raramente mencionada pelos donos dos veículos privados, a representação social (o dono de um modelo da BMW olha orgulhosamente para o dono de um ix90/3 da Hyundai. Este olha com desdém para o dono de um Linea da Fiat, com o pensamento que expressa uma sociedade ainda colonialista, dizendo para si mesmo, o meu é importado. O do Linea se pensa vitorioso ao olhar o Gol Trend, da Volks, ao lado do seu na garagem do prédio. O do Trend olha para o Uno Mille do outro vizinho e pensa: "- Coitado.". Aliviando, adiciona ao pensamento, pelo menos não está de bicicleta);
- custos individuais: prestação, seguro, IPVA, gasolina, manutenção, contribuição negativa à saúde pelo acréscimo de sedentarismo,
- custos sociais locais: a poluição do ar, a poluição sonora e efeito sobre a mobilidade, pois cada carro a mais nas ruas tira espaço de via dos demais carros, isto é, cada carro tem um custo social na forma de um pequeno impacto negativo na velocidade média dos demais ocupantes das vias (Deixa-se de mencionar vantagens por ser um exercício desafiador encontrar vantagens sociais locais para os carros) ;
- vantagens sociais nacionais: os empregos diretos e indiretos mantidos por cada carro produzido por ano (Os analistas, em geral, não anunciam custos nacionais para uma indústria automobilística. Há outras vantagens de menor expressão, ou que assumem grande expressão, ainda maior do que a vantagem aqui relacionada, em momentos e condições específicas de uma nação, como foi o caso do ganho de conhecimento tecnológico industrial mecânico que representou a indústria automobilística brasileira durante sua expansão, no Governo Juscelino Kubtischek); e
- custos sociais mundiais: a contribuição direta e indireta ao Aquecimento Global através da emissão de dióxido de carbono causada pela fabricação e uso do automóvel.
Com o crescente nível de renda, no Brasil e demais países em desenvolvimento cada vez mais consumidores vão entrando numa situação econômica em que um crescente número de seus cidadãos que avaliam as vantagens individuais de uso de carro privado para seus deslocamentos, descontados os custos privados, irão ultrapassar as vantagens das alternativas de uso dos transportes coletivos e outras porventura existentes para seus deslocamentos. Nestas condições, ampliar vias para evitar engarrafamentos conduz a que mais consumidores que vejam vantagens líquidas passem a gozá-las com a compra de carros, e fazendo com que os engarrafamentos voltem a existir. E que, assim, mais carros fiquem engarrafados. Ou seja, desafogam-se as vias e logo voltam a ficar engarrafadas.
Há uma forma de evitar que esta situação, de prejuízo para todos, se transforme numa inexorável situação. É difícil, mas não totalmente impossível o estabelecimento de uma situação em que haja carros nas ruas, haja o funcionamento da indústria automobilística, o que significa mais carros novos, e não haja engarrafamentos. É uma questão de deixar as viagens de carro serem liquidamente vantajosas em menor número de situações do que atualmente.
Vejamos. Para reduzir o uso individual do carro, passando o consumidor a optar por outras formas de deslocamento mais saudáveis, as vantagens líquidas de alguma opção devem ser aumentadas. Como a vantagem líquida é a vantagem traduzida em termos econômicos menos o custo, há aumento da vantagem líquida quando há aumento da vantagem, ou diminuição do custo, ou ambos. Assim, se tem diminuição do uso do carro quando o custo é aumentado ou o custo de alguma ou algumas das opções diminuído. Não é qualquer mudança de custos que resolve. Deve ser uma mudança suficientemente grande para mover muitos usuários de automóveis para outras opções.
Um constituinte do custo é o preço do combustível. O preço do combustível já é alto no Brasil. Mas, como o consumidor não tem a opção de importar combustível, tem que o comprar localmente, o custo pode ser aumentado. Uma boa dose de aumento de imposto incidente sobre os combustíveis usados pelos carros – gasolina e álcool, tende a reduzir o uso dos carros. Mais ainda se a receita adicional for usada para, de alguma forma, indireta que seja, subsidiar o transporte coletivo e a construção de ciclovias.
A vantagem de velocidade nos deslocamentos pode ser reduzida pela dificuldade em estacionar e pelo aumento do percurso entre o estacionamento e o destino final do viajante urbano. Meios fios amarelos, contribuem muito para fazer fluir o tráfego e, ao mesmo tempo, reduzir as vantagens de um deslocamento em automóvel particular. Tende a reduzir viagens mais curtas, que envolvem quarteirões, as quais passam a ter o deslocamento a pé como o mais racional. Uma política de incentivo a estacionamentos particulares viabiliza o uso de automóvel privado, mas, pagos que são, o encarece, elevando o custo de seu uso.
A bicicleta não é, no momento, para os donos de automóvel, vista como alternativa. É uma questão cultural. E a questão cultural é um fortíssimo fator orientando as opções, formando o valor econômico da vantagem. Mas a questão cultural pode ser mudada. Os empreendedores privados tem grande prática em fabricar necessidades nos consumidores, orientando-os a uma mudança cultural em que os seus produtos de tornam indispensáveis. Já dizia o grande economista Schumpeter, que cabe aos empresários “domar” os consumidores. Não é impossível aos governos, agindo de forma inteligente, mudar a disposição dos possuidores de automóvel a substituírem o carro pelas viagens em transportes coletivos, em bicicletas e pelas viagens a pé. Em viagens de até seis ou oito quilômetros a bicicleta é mais racional. Viagens de um ou dois quilômetros são confortavelmente feitas a pé. Havendo alternativas viáveis às viagens de carro, elas são deixadas de lado quando, dentro dos limites aceitos culturalmente, os custos privados da viagem de carro não a justificam, face a, pelo menos, uma das alternativas.
A valoração econômica das vantagens é fortemente influenciada por valores culturais, sabidamente muito resistentes a mudanças. Mas mudam sob a influência de fatores dirigidos a provocar mudança. Um firme esforço norteamericano substituiu a predominância das músicas do caribe, como componente externo da pauta de músicas ouvidas pelos brasileiros até os anos cinquenta, por ritmos estadunindenses que inundaram os sistemas sonoros no Brasil a partir dos anos setenta. Em relação às bicicletas temos, enfim, alguma mudança.
Na avaliação dos políticos as ciclovias começaram, enfim, a serem valorizadas. Mais informação sistemática em programas educativos e em reportagens na televisão comercial sobre a desgraça do sedentarismo e as vantagens de andar, a pé ou de bicicleta, favorecem à superação da ideia absurda de que os pés são instrumentos desenhados para serem usados apenas pelos pobres. É um espaço que vai se abrindo para que seja factível aos governos estabelecerem condições que venham a permitir a vantagem líquida do uso de automóveis privados ser reduzida de forma a ser pequena a fração de viagens realizadas por este meio socialmente irracional de transporte. Os carros poderiam continuar a ser demandados, comprados, estacionados em casa, etc. Continuariam um excelente instrumento de representação social, sua produção trazendo os reconhecidos benefícios sociais nacionais. E, já que os carros estariam pouco presentes no estacionamento do trabalho, os birôs poderiam ter a fotografia da(o) esposa(o), dos filhos e do indefectível carrão.
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